Só me interessa o que não é meu. Assim Oswald de Andrade descreveu em seu manifesto uma suposta prática de assimilação cultural, mais conhecida como antropofagia: influências externas são engolidas, digeridas e transformadas, ainda no útero, em mecônio, para depois irromper com toda a força e magia em algo novo e indefinido. É a mágica da transformação, da transmutação do Outro em Local. A discussão sobre fluxos e refluxos culturais ganhou um novo impulso em tempos de globalização, efeito cascata que diluiu as fronteiras comerciais e artísticas que dividiam o Ocidente e os povos bárbaros. Neste sentido, é possível realizar um acoplamento estrutural entre antropologia e arte. No texto As exposições internacionais de arte brasileira: discursos, práticas e interesses em jogo, Ana Leticia Fialho cita a famosa declaração do também famoso curador Jean-Hubert Martin, responsável por um dos primeiros eventos de arte globalizada, a exposição Les Magiciens de la Terre: Na América do Sul, especialmente, à parte o Brasil, nós tivemos muitas decepções porque encontramos artistas envolvidos num sistema de arte ocidental, com galerias, museus, etc. E as produções dos artistas nos pareceram muito dependentes de nossos grandes centros, ora, o que procurávamos era outra coisa – algo que pudesse renovar o olhar, renovar o interesse... Não me interessava mostrar que os artistas na América Latina lêem Artforum. A ironia, como observou Hermano Vianna, é que um dos indígenas das curio fairs internacionais acabou saindo na capa da revista citada! O gancho para invadir o campo da antropologia é irresistível e, para nos guiar nesse terreno movediço, invocamos Eduardo Viveiros de Castro, professor do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. No wiki AmaZone, há um outro manifesto, o Manifesto do Nada, que trata das diferentes abordagens etnográficas. Em nome da legibilidade de nossa tese, vale à pena citar um trecho específico do manifesto, ao lado dos respectivos diagramas.
No primeiro diagrama, o antropólogo (A) tende ao centro do sistema. Ele se desdobra em antropólogo e nativo pois, como já vimos, além de manter uma relação imediata (‘convencional’) com a cultura, assim como o nativo, ele também mantém uma relação mediatizada ou reflexiva (‘inventiva’). O antropólogo, em suma, possui os sentidos literal e metafórico da cultura.
[No segundo diagrama], o nativo (N), ao contrário, não possui capacidade inventiva. Ele mantém uma relação direta e literal com sua cultura. O máximo que lhe é concedido é a condição de ‘sujeito’ e não mais a de ‘objeto’.
Voltamos, então, para Ana Leticia Fialho, que coincidentemente divide em duas "categorias" os discursos curatoriais (ou "metadiscursos", segundo a definição da artista e curadora Martha Rosler). No discurso da assimilação/homogeneização, o elemento nacional deve desaparecer, sendo válidos somente os critérios estéticos, supostamente atemporais e universais. Já o discurso da diferença baseia-se na afirmação de características nacionais, regionais ou locais; no elogio da mestiçagem, do multiculturalismo ou até mesmo do exotismo.
Para suavizar - e ilustrar - a aridez do assunto, confrontamos a foto acima de um Moai original da ilha de Páscoa (1100 d.C.) com o trabalho Easter Bunnies (2004 d.C.) do artista suíço Olaf Breuning.