28.11.06

Mágicos da Terra

Só me interessa o que não é meu. Assim Oswald de Andrade descreveu em seu manifesto uma suposta prática de assimilação cultural, mais conhecida como antropofagia: influências externas são engolidas, digeridas e transformadas, ainda no útero, em mecônio, para depois irromper com toda a força e magia em algo novo e indefinido. É a mágica da transformação, da transmutação do Outro em Local. A discussão sobre fluxos e refluxos culturais ganhou um novo impulso em tempos de globalização, efeito cascata que diluiu as fronteiras comerciais e artísticas que dividiam o Ocidente e os povos bárbaros. Neste sentido, é possível realizar um acoplamento estrutural entre antropologia e arte. No texto As exposições internacionais de arte brasileira: discursos, práticas e interesses em jogo, Ana Leticia Fialho cita a famosa declaração do também famoso curador Jean-Hubert Martin, responsável por um dos primeiros eventos de arte globalizada, a exposição Les Magiciens de la Terre: Na América do Sul, especialmente, à parte o Brasil, nós tivemos muitas decepções porque encontramos artistas envolvidos num sistema de arte ocidental, com galerias, museus, etc. E as produções dos artistas nos pareceram muito dependentes de nossos grandes centros, ora, o que procurávamos era outra coisa – algo que pudesse renovar o olhar, renovar o interesse... Não me interessava mostrar que os artistas na América Latina lêem Artforum. A ironia, como observou Hermano Vianna, é que um dos indígenas das curio fairs internacionais acabou saindo na capa da revista citada! O gancho para invadir o campo da antropologia é irresistível e, para nos guiar nesse terreno movediço, invocamos Eduardo Viveiros de Castro, professor do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. No wiki AmaZone, há um outro manifesto, o Manifesto do Nada, que trata das diferentes abordagens etnográficas. Em nome da legibilidade de nossa tese, vale à pena citar um trecho específico do manifesto, ao lado dos respectivos diagramas.

No primeiro diagrama, o antropólogo (A) tende ao centro do sistema. Ele se desdobra em antropólogo e nativo pois, como já vimos, além de manter uma relação imediata (‘convencional’) com a cultura, assim como o nativo, ele também mantém uma relação mediatizada ou reflexiva (‘inventiva’). O antropólogo, em suma, possui os sentidos literal e metafórico da cultura.


[No segundo diagrama], o nativo (N), ao contrário, não possui capacidade inventiva. Ele mantém uma relação direta e literal com sua cultura. O máximo que lhe é concedido é a condição de ‘sujeito’ e não mais a de ‘objeto’.

Voltamos, então, para Ana Leticia Fialho, que coincidentemente divide em duas "categorias" os discursos curatoriais (ou "metadiscursos", segundo a definição da artista e curadora Martha Rosler). No discurso da assimilação/homogeneização, o elemento nacional deve desaparecer, sendo válidos somente os critérios estéticos, supostamente atemporais e universais. Já o discurso da diferença baseia-se na afirmação de características nacionais, regionais ou locais; no elogio da mestiçagem, do multiculturalismo ou até mesmo do exotismo.

Para suavizar - e ilustrar - a aridez do assunto, confrontamos a foto acima de um Moai original da ilha de Páscoa (1100 d.C.) com o trabalho Easter Bunnies (2004 d.C.) do artista suíço Olaf Breuning.

26.11.06

Tecnologia e Técnica


Na escultura cinética de Jeff Lieberman, uma lâmpada modificada estabiliza-se no ar por meio de um sistema de feedback. Além disso, ela se acende graças a uma espécie de transmissão wireless, oriunda dos circuitos dispostos na base da escultura. Abaixo, um exemplo de produção popular no Brasil, um utensílio construído a partir de uma lâmpada (fonte: revista RAIZ #4). O contraponto ilustra a discussão sobre a "arte pela arte" e sobre como pode a arte tecnológica revitalizar a "necessidade”, fator encontrado no que é convencionalmente chamado de “artesanato". Afinal, a tecnologia e a técnica não são irmãs separadas no nascedouro?

24.11.06

Pizza Aumentada

André Lemos, parte do conselho editorial de CIBERCULTURA, foi citado em Space and Culture, blog que o Itaulab acompanha com fidelidade canina. Na citação, André fala de um trabalho com realidade aumentada em telefones celulares que foi apresentado no Mobilefest.

21.11.06

Cyber'n'Ethics

Em seu último artigo para a Wired News, o escocês Nick Currie (o Momus) pergunta até que ponto as novas quinquilharias tecnológicas que nos assolam quase diariamente são acompanhadas por discussões sobre ética (Os novos produtos melhoram o mundo, a sociedade, as pessoas? Melhorará algumas vidas ao custo de outras? Como alterará as relações entre seres humanos?). André Vallias, inspirado por uma notória palestra de Heinz von Foerster, também pergunta: Temos drum'n'bass e rock'n'roll. Quando teremos cyber'n'ethics?. Sim, o excesso de gadgets - Zune, Wii, PS3, iPhone, etc. - pode prejudicar a existência humana, ao invés de incrementá-la. É o que afirma o grande Octavio Paz, num obrigatório artigo publicado na revista RAIZ: A tecnologia é internacional. Suas realizações, seus métodos e seus produtos são os mesmos em qualquer canto do mundo. Ao suprimir as particularidades e peculiaridades nacionais e regionais, ela empobreceu o mundo. Tendo se espalhado de uma ponta à outra da Terra, a tecnologia se tornou o agente mais poderoso da entropia histórica. Suas conseqüências negativas podem ser resumidas em uma frase sucinta: ela impõe uniformidade sem promover unidade. Ela nivela as diferenças entre culturas e estilos nacionais distintos, mas não consegue erradicar as rivalidades e os ódios entre povos e estados. A tecnologia é triste, mas existe. E não podemos nos comportar como carneiros indo para o matadouro. Reflexão já. Quem sabe a demanda não seja realizada no F.A.q., evento promovido pelo SESC? Alguns dos participantes estão no panteão de heróis do Itaulab, como Suely Rolnik e Eduardo Viveiros de Castro.

19.11.06

No Leviatã

No Festival d'Automne, Panthéon, Paris, Léviathan Thot, instalação monumental do artista brasileiro Ernesto Neto. Sobre artistas brasileiros contemporâneos que são mais conhecidos no exterior que em sua terra natal, há um texto de Hermano Vianna.

16.11.06

The Athrocity Exhibition

Automóveis mutantes e distorcidos. Abaixo, a genial coreografia do Citröen C4, que virou um transformer dançarino. Acima, o Bugatti de James Angus, remodelado sob uma perspectiva alongada (via Artkrush).

Games e Guerra


Segundo a descrição, a exposição ATARI COLD WAR pretende representar a realidade sociopolítica do ocidente no final do século 20 por meio dos videogames. O conceito é muito bom. Há uma resenha em CIBERCULTURA que trata de relance sobre esse assunto.

9.11.06

Fantasma na Máquina


Alguns comentários sobre o Simpósio Fiat 30+, que terminou ontem em São Paulo. Ao citar o projeto Google Will Eat Itself (aquele que pretende criar um círculo vicioso entre as comissões do AdSense e as ações da empresa Google, tornando-a um fagócito que devora-se a si mesmo), Mathew Fuller proferiu o termo “memética de segunda ordem” (uma referência à cibernética de segunda ordem?), ou seja, o meme da empresa (apud Richard Dawkins) seria transformado num canibal que come a própria cauda no campo da cultura. Tirante um pequeno pau, a vídeo conferência de Ray Kurzweil desenrolou-se sem maiores problemas. O Teleportec comportou-se relativamente bem (imagem acima). Já as previsões do autor de The Age of Spiritual Machines têm denoument e data certa para ocorrer. O desaparecimento do computador e o download de mentes, por exemplo, continuam fazendo parte de seu cardápio doidivanas. O exercício é válido, mas o Medgadget tem mais apelo. Outro ponto forte foi a palestra de Ulpiano de Meneses, que falou em “privatização da memória” (grandiosa expressão!). Ah! Ficamos sabendo que Lucas Bambozzi tem a mesma opinião que Fred Forest sobre a Bienal de São Paulo (ver post abaixo).

Vivendo Junto


Publicamos em primeira mão o provocativo texto de Etienne Boulba, crítico independente de arte, sobre a Bienal 3000 de São Paulo, o último prank de Fred Forest.

A Bienal 3000 de São Paulo é um acontecimento que ficará na história da arte como um novo modelo para sua produção, difusão e relação com o público na sociedade da informação e comunicação, na qual vivemos.

A Bienal 3000 é uma Bienal planetária, digital, participativa e prospectiva que ocorre no espaço físico do MAC (Museu de arte Contemporânea de São Paulo) e no espaço virtual da Internet.

Diversos críticos de arte reunidos em Paris para seu Congresso Internacional em outubro de 2006 já a reconheceram sua importância. Além da 27ª Bienal que foi seu ponto de ancoragem, a Bienal 3000 de São Paulo questiona criticamente os circuitos da arte contemporânea e seu funcionamento. Em 1º de novembro de 2006 a ação Bienal 3000, concebida e realizada por Fred Forest, simultânea à 27ª Bienal oficial de São Paulo, já pode ser considerada um sucesso especial. Deve-se notar que este projeto continuará a se desenvolver até dia 15 de dezembro de 2006. Por conseguinte, pela comunicação viral induzida pelo artista na Internet através de suas próprias redes, este sucesso ainda não pôde atingir dimensão ainda mais importante. Até agora houve mais de 1.000 participações, boa parte delas do Brasil e América Latina, mas também da França, Portugal, Canadá, Bélgica, Itália, Eslovênia, Áustria, Polônia, etc. São pinturas, desenhos, fotos, vídeos, performances, esculturas, poemas e uma reflexão teórica sobre arte que indicam uma ampla diversidade de disciplinas representadas.

Tal participação já seria em si expressiva, mas o que chama a atenção é, de modo global, a própria "qualidade" das obras propostas pelos internautas! A experiência de Fred Forest é uma experiência enriquecedora na medida em que ela nos permite questionar, dentro da arte contemporânea, a pertinência dos julgamentos dos críticos (os curadores das bienais e outras manifestações) de quem decide, recusa ou ignora artistas que se candidatam a apresentar suas obras ao público.

O Congresso Internacional da AICA (Associação Internacional dos Críticos de Arte) que acabou há pouco em Paris, demonstra uma crise da profissão perante a dificuldade de seleção, que só cresce. O congresso percebe um deslocamento cada vez maior da estética para a sociologia e a antropologia. O problema que Forest quer marcar, ele que é doutor pela Sorbonne e tem assim respaldo para se manifestar sobre esta situação, do mesmo modo que um curador de qualquer exposição oficial, é a onipresença do mercado, seja em São Paulo, na Documenta de Kassel, na Bienal de Veneza ou na FIAC em Paris - o que contribui a prerrogativas e arbitrariedades que influenciam direta ou indiretamente a seleção de obras. Assim, seria a economia quem, em última instância, determinaria e legitimaria quais os valores simbólicos da sociedade contemporânea? Sabendo-nos breves, poderíamos dizer que não é mais Kant quem decide, ou Artur Danto, mas Bill Gates hoje e, amanhã, o Google!

Se a 27ª Bienal recorres a Roland Barthes para legitimar seu conceito fundador, se fosse para lançar mão da reflexão universitária francesa, ela poderia fazer o oposto e recorrer a outro filósofo, Jean Baudrillard, que teve a oportunidade de denunciar em alto e bom tom a arte contemporânea como uma impostura.

O segundo ponto que gostaríamos de notar é como a ação de Forest ressalta o fracasso desta 27ª Bienal que pretendia, sem prudência, e apoiada por propagandas e colóquios preparatórios, ser uma bienal popular, periférica, dispersa, etc. O resultado negativo é edificante e não serão dois ou três grupos político-sindicais, utilizados como álibis, que mudarão algo. Lisette Lagnado é muito mais inteligente que isso para saber que a questão da arte não é uma questão de bons sentimentos, mas de educação, do meio social e da transformação das superestruturas, como diria Marx. Neste caso não se trata de um filósofo do Colégio da França quem poderia mudar alguma coisa, de qualquer modo, um político à la Lula, se não o derrubam de seu pedestal.

A ação de Fred Forest pretende por sua demonstração crítica apontar para, de um lado, a arbitrariedade de escolha das bienais oficiais e, de outro, mostrar que as redes da Internet e seus espaços virtuais constituem-se como uma alternativa digital que pode sinalizar uma mudança cultural inexorável. Na ação de Forest, artistas reconhecidos e importantes também quiseram se manifestar. Foram os casos de Eduardo Kac, Clemente Padin, Maurice Benayoun, Miguel Chevalier, Lucas Bambozzi, Gilbertto Prado, Roland Baladi, Roland Sabatier, Jean-Noel Laszlo e dezenas de outros. Mas na Bienal 3000 também há numerosos outros artistas que jamais foram convidados para uma Bienal, cuja produção não deixa nada a desejar ao que vemos nas galerias de Nova York, Londres, Milão ou Berlim, ou mesmo em alguns museus de arte contemporânea que frequentemente se contentam em seguir o movimento e se enquadrar no mercado. Um mercado que, sob a forma do marketing cultural, faz e desfaz valores e reputações como em manipulações da bolsa.

Forest nos mostra, com a Bienal 3000, que vias alternativas se abrem a esses artistas agora, que capazes de por conta própria utilizar as tecnologias de comunicação. Em vão, Fred Forest pediu cortesmente a Lisette Lagnado a possibilidade de organizar com ela um debate público sobre essas questões, mas a única resposta da curadora da 27ª Bienal, até agora, é uma recusa silenciosa, prudente e envergonhada.

Enfim, para finalizar, é importante dizer que Fred Forest fez uma instalação no MAC com um dispositivo pelo qual sua Bienal do Ano 3000, de maneira minimalista, permite por um minúsculo orifício, que se descubra a imensidão do mundo. A imensidão de um mundo infinito, onde imagens, sons, palavras, vídeos, propagam-se por um espaço virtual apropriado pela arte atual. Se a 27ª Bienal oficial de São Paulo não apresenta sequer uma instalação ligada à Internet, Fred Forest mostra que ele, sim, conseguiu realizar uma Bienal popular, periférica e dissolvida que a Bienal oficial tanto quis realizar. Será preciso esperar que este ensinamento seja apropriado pela Bienal oficial do ano 3000...

8.11.06

Multiplicai-vos

Mariana Manhães participa da exposição N MÚLTIPLOS com a obra “Livro das Horas (Armário)”, de 2006. Trata-se de uma caixa de madeira contendo DVD, desenho, circuito eletrônico e motor. A exposição explora o tema da unicidade da obra de arte em tempos de reprodutibilidade mecânica. Se uma obra for múltipla, contesta seu aspecto mercadológico e, consequentemente, os processos capitalistas de subjetivação. Tema interessante, mesmo levando em conta que Mestre Vitalino vem construindo objetos multiplicáveis há muito tempo. O evento, com curadoria de Ligia Canongia, acontece na Galeria Arte 21, Rio de Janeiro.

6.11.06

Estética e Política


ArtCal tem uma nota sobre a exposição Kapital, na Kent Gallery, Nova York. Segundo o blog, o tema da exposição pode ser resumido num wishful thinking de Joseph Beuys, para quem as superestruturas políticas e econômicas poderiam ser incrementadas por meio de linguagens artísticas. Há ligações mais que perigosas entre "Monte Carlo Bond" (acima), de Duchamp, e "On Translation" (abaixo), de Muntadas. O nosso dispositivo de reconhecimento de padrões capturou outras tendências de “embelezamento” de instituições, principalmente no que se refere à forma como elas praticam suas políticas. Segundo o texto Translate - Beyond Culture: The Politics of Translation, de Hito Steyerl (publicado originalmente num dos sites transversais do European Institute for Progressive Cultural Policies), a idéia de "tradução" pode transferir o velho modelo de comunidade da política para a esfera da estética. Já as cabeças reunidas em torno do projeto AACORN (Art, Aesthetics, Creativity & Organization Research Network) estudam maneiras de promover o campo das chamadas "estéticas organizacionais", lembrando-nos de que os problemas de uma empresa são, no fundo, problemas de design.

Arquivo do blog