17.3.08

Autoria como Gênero

Como visitar exposições de arte sem sair do sofá? Não é uma pergunta absurda considerada a dificuldade cada vez maior de deslocamento de corpos físicos (crise aérea, terrorismo, etc.) e, claro, limitações de ordem financeira. Há que se criar, portanto, uma metodologia para resolver o problema, sem que isso provoque um choque de realidade. Google Book, YouTube, Flickr, Tachiyomi e compra de catálogos são algumas soluções – paliativas, diga-se. Mas é o que há disponível. Quem não gostaria de ir ao Museum of Contemporary Art, em Los Angeles, para ver ao vivo os produtos de Kakai & Kiki na individual de Murakami? E há tantas outras! Há uma especifica que, por si só, já valeria a entrega da prometida metodologia: Shandyismus - Autorship as Genre, que aconteceu no ano passado na galeria Secession, em Viena (neste caso, só a nossa metodologia salva). Quem imaginaria uma exposição de arte contemporânea tendo como ponto de partida o livro "A Vida e as Opiniões do Cavaleiro Tristram Shandy", de Laurence Sterne, o pai da prosa satírica do século 18? O livro já foi filmado pelo diretor Michael Winterbottom (reconhecido por ele mesmo como "infilmável"), mas o curador Helmut Draxler deu um passo além. Aparentemente, o conceito resolver-se-ia na digressão miscelânica, uma das características do autor irlandês; numa visão mais atenta, porém, nota-se que o que o curador propôs foi uma reflexão sobre as relações entre autor e público, tendo como base os diversos loops cibernéticos que ocorrem por meio de referências, alusões e correspondências entre os pólos de emissão e recepção (Cf. Lynne Cooke, Artforum, dezembro, 2007). Houve também uma reavaliação da "estética curatorial", expressão criada pelo artista Ricardo Basbaum em referência às intervenções do curador Roger M. Buergel na Documenta 12. De certa forma não foi exatamente isso que Sterne perpetrou com a quebra de um cânon formal, a qual só foi possível devido aos avanços da tecnologia tipográfica da época? Antes de tudo, os trabalhos presentes na exposição de Draxler foram o triunfo da “linguagem metalógica”. Para dar legibilidade à metodologia proposta no início do parágrafo, faz-se necessário comentar algumas das obras, numa espécie de “test-drive” conceitual.

Duck Amuck”, desenho animado realizado em 1951 por Chuck Jones, é puro pop-surrealismo. A premiadíssima animação da Warner Bros. mostra o Patolino sendo “abusado” pelo cartunista, que a todo o momento altera sua forma e os contextos da história, a ponto de o personagem se dirigir ao seu criador solicitando mais coerência, num diálogo que remete às vozes narrativas do clássico de Sterne se dirigindo aos leitores. Neste sentido, o desenho animado de Jones é “shandynesco” ao extremo.

“Th’ Life an’ Opinions of Tristram Shan’y, Juntleman, as enny fool kin plainly see. Voloom I” foi uma intervenção feita pelo artista David Jourdan, que fez uma leitura de dois capítulos do livro de Sterne modificados pelo The Dialectizer, um software que transforma qualquer texto em inglês no dialeto falado pelos personagens da famosa HQ “Ferdinando e a Família Buscapé”, criado por Al Capp na década de 60.

Boîte-en-Valise”, de Marcel Duchamp, é um “mini-museu itinerante”, na verdade, uma série de malas contendo sessenta e nove reproduções em miniatura de célebres trabalhos do artista, entre eles: “Broyeuse de Chocolat” e “L.H.O.O.Q”. Tirante o fato de sugerir uma discussão sobre a originalidade de obras de arte (bricolagem de bricolagens), o conjunto é uma extravagante autoparódia, recurso caro ao satirista irlandês que fundamenta a exposição.

"With Elements of Web 2.0", de Olia Lialina e Dragan Espenschied, é uma série de silkscreens e impressões digitais aplicadas sobre alumínio inspirada em ícones e grafismos bem familiares aos navegantes da Web. O díptico “Dimension”, por exemplo, replica a ferramenta de controle do Google Maps. Ao retratar elementos iconográficos da Web com uma abordagem quase religiosa, os dois artistas propõem novas encenações de velhos cultos. Referência aos asteriscos, travessões e outros sinais diacríticos presentes ao longo do texto de Sterne?

Le Drapeau Noir. Tirage illimité” (1968), de Marcel Broodthaers, é fruto de um manifesto neo-vanguardista na forma de duas cartas abertas (“Académie III” e "Le noir et le rouge") cujos textos derivaram para uma série de placas em alto-relevo (depois chamadas de “pinturas”). A carta "Académie III" foi alterada para "Académie II" na versão negra (em negativo) da primeira placa, enquanto "Académie II" se tornou o título de um conjunto branco (em positivo) da versão em negativo. Todas elas foram apregoadas como sendo parte de uma "edição limitada" (sete cópias) para questionar a democratização dos objetos de arte pela mera reprodutibilidade técnica (Benjamin e Sterne dando as mãos). Na segunda carta (e placas subseqüentes), de cunho mais político, são listadas as cidades onde se deram os movimentos radicais da década de 60. (Cf. "Neo-Avantgarde and Culture Industry", Benjamin H. D. Buchloh)

Um dos diagramas dispostos na obra mais prematuramente pós-moderna que já existiu. É parte do capítulo quatro, do Volume IX, em que o cabo Trim mostra ao Tio Toby as mazelas da vida matrimonial “enquanto o homem é livre”, segundo a linha errática desenhada pelo floreio de seu bastão.

Pôster do filme "Pickpocket" (1959) de Robert Bresson, feito por Hans Hillmann, considerado o fundador desse tipo de arte gráfica na Alemanha. Aqui resta-nos levantar algumas questões sobre a amplitude metalingüística da peça: Bresson cita “Crime e Castigo”, de Dostoievski, e o protagonista do filme cita “Prince of Pickpockets”, de George Barrington; mas a quem Hillmann estaria citando? Ou a corrente referencial engloba apenas Hillmann que, num universo paralelo, seria um batedor de carteiras?

“Dokumentation über Marcel Duchamp” (1960), de Max Bill, pôster de mostra individual de Duchamp no Kunstgewerbemuseum, em Zurique. Mais um caso de artista citando outro artista.

"Washington D.C.” (1966), de Robert Frank. Aqui o fotógrafo cita o fotojornalista. Não seria o caso de o curador ter colocado imagens de “The Robert Frank Coloring Book" coloridas por outros artistas e fotógrafos? Fica a título de sugestão. Cenograficamente, o trabalho de Frank ficou disposto sobre a aplicação do texto de introdução do Volume IX, titulado “Dedicatória a um Grande Homem”.

A lista prossegue com o coletivo Bernadette Corporation, Martin Kippenberger, Jutta Koether e tantos outros artistas que trafegaram (ou trafegam) no limiar entre autoria simples e composta e que não pensavam (ou pensam) duas vezes antes de se fartarem com digressões e food for thought (numa livre tradução: ração para cavalos do motor mental). É sem dúvida uma exposição que sobrepujou a ortodoxia da problemática autoral, sem apelar para os tradicionais jogos dialéticos entre autor e “cliente”. Com relação ao método de visitar exposições sem sair do sofá, o blog roga para que a brincadeira não seja levada tão a sério; afinal, nada como visitá-las in loco. Foi apenas uma breve recaída na ontologia platônica.

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